domingo, 19 de abril de 2020

[ESPECIAL] Vozes de Tchernóbil – Svetlana Aleksiévitch – Resenha


Por Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Sábado, 26 de abril de 1986, 1 h e 23 minutos, explode o quarto reator da usina de Chernobyl[1][2][3], na Ucrânia soviética[4]. A radiação liberada pela explosão entraria para a história como o maior acidente nuclear conhecido[5] e a nuvem radioativa se espalharia por toda Europa, bem como as substâncias gasosas e voláteis projetadas a grandes alturas e que chegariam até mesmo à América do Norte[6]. Depois da tragédia que se abateu sobre soviéticos, muitos livros e reportagens relatariam o desastre, suas causas, as tentativas do governo soviético de mantê-lo em segredo, mas poucos deles mostrariam a dimensão humana, poucos dariam voz as vítimas: liquidadores, camponeses, soldados, as crianças. Em Vozes de Tchernóbil, a repórter bielorrussa e ganhadora do Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévitch, dá espaço para os depoimentos daqueles que viveram o desastre de perto, que testemunharam e padecem dos seus reflexos. Relatos emocionantes, carregados dos mais diversos sentimentos e que mostram muitas das facetas do acidente que só quem viveu pode contar.

Confiram a resenha do livro.

Sinopse

Em abril de 1986, a explosão da usina de Chernobyl criou um dos maiores desastres da história da humanidade e teve como saldo mortes, evacuações e desolação. As perdas materiais foram imensas, mas os danos emocionais e os custos humanos, incalculáveis. Por meio de relatos daqueles que viveram Chernobyl, que por ele foram marcados e que também vivem em meios as sombras do desastre, Svetlana Aleksiévitch conta a história oral do acidente nuclear. Um livro emocionante e único que descortina a letargia[7] do Estado, o desalento daqueles que foram arrancados da terra e de tudo que conheciam, bem como a morte e o sofrimento daqueles que, por amor à pátria, deram sua vida na luta suicida contra a radiação.

Resenha

Como alguns dos leitores do blog devem saber, sou licenciado em Geografia e discutir em sala de aula temas como matrizes e fontes energéticas é uma das minhas funções. Nesse tema faz parte também o debate acerca da produção de energia elétrica a partir do calor gerado pela fissão nuclear de átomos radioativos, produção no qual EUA e URSS fizeram uso pioneiro.

Dentro do tema, particularmente, a discussão acerca da produção e do emprego da energia nuclear na sociedade moderna sempre me atraiu, tanto pela polêmica que gira entorno dos riscos envolvidos em seu emprego, como também pelo tanto de conhecimento e domínio tecnológico imbuído em seu desenvolvimento: uma produção de energia que não é só perigosa, mas também complexa e contraditória (no fim dessa postagem você encontra um vídeo sobre como funciona a produção dessa energia).

Digo complexa porque sua produção demanda o cumprimento de muitas medidas de segurança e um conhecimento técnico apurado; e contraditória porque, apesar de produzir resíduos extremamente nocivos e cujo armazenamento e descarte deve seguir um rigoroso protocolo, a energia nuclear é considerada como limpa por liberar na atmosfera durante a sua produção apenas vapor d'água. Contudo, ela é ainda muito perigosa porque não elimina o risco de vazamento ou de um acidente nuclear, a exemplo do ocorrido em Fukushima, no Japão, em 2011, em decorrência de um terremoto seguido de tsunami, ou do acidente em Chernobyl, Ucrânia, em 1986. Vozes de Tchernóbil trata justamente deste último desastre nuclear, porém, a partir de uma perspectiva completamente diferente daquela utilizada nos livros, filmes, documentários e reportagens que abordaram o tema.

Para nos situarmos geográfica e historicamente no contexto do livro de Svetlana Aleksiévitch fizemos uma postagem especial sobre o momento histórico do acidente e como este se deu. Contudo, aqui repetirei algumas coisas para que o leitor possa se situar histórico-espacialmente.

O acidente da usina nuclear de Chernobyl se deu no ano de 1986, já no princípio do fim da Guerra Fria e do bloco socialista que se desmancharia com a desagregação da União Soviética em 1991. Localizada na república soviética da Ucrânia, a província de Kiev, onde se encontram as cidades de Chernobyl e Pripyat, seria o principal cenário do desastre que também afetaria enorme e principalmente a república vizinha, a Bielorrússia.

Após uma explosão em decorrência de testes que eram realizados no reator 4 da usina durante a madrugada de 26 de abril, uma grande nuvem radioativa se espalharia pela região alcançando diversos países da Europa e de outros continentes, mas afetando por sobremaneira os habitantes dos arredores da usina que tiveram que ser evacuados em massa sem possibilidade de retorno.

A explosão ocorrida no reator 4 da Usina Nuclear de Chernobyl gerou um grande saldo de mortes e mesmo hoje é a causa principal dos muitos casos de doenças congênitas e má formações nas crianças, bem como pela elevada incidência de câncer na população de diversas faixas etárias.

Entretanto, mais do que sequelas na saúde da população ucraniana e bielorrussa, o incidente provocou diversos outros reflexos na vida daqueles sujeitos. Perdas imateriais e subjetivas: perda de identidade e do lugar de pertença, este último um conceito que usamos na Geografia e que está ligada ao subjetivo e ao simbólico, mas também ao espaço físico da vivência.

Composto completamente de relatos orais, Vozes de Tchernóbil vem contar essa história sob um “olhar mosaicista[8] onde as várias vozes, sob ópticas abordagens e pontos diferentes vão montando o cenário e o roteiro daqueles acontecimentos do qual elas mesmas fizeram parte, porém em posições e momentos distintos. O resultado é uma quebra com a impessoalidade da notícia e com a frieza dos números. É o acidente e a própria União Soviética vistos de outro ângulo, através do olhar de quem esteve lá, de quem ainda vive nas zonas proibidas, de quem colhe e padece dos frutos radioativos de Chernobyl. Também daqueles que não viveram os primeiros dias, mas tiveram suas vidas inevitavelmente marcadas pelos efeitos do acidente: as gerações posteriores.

Durante quase 20 anos Svetlana entrevistou e reuniu dezenas de relatos provenientes de um grupo extremamente heterogêneo: ex-soldados, ex-liquidadores[9], físicos, professores, camponeses, donas de casa, burocratas, membros de ONGs, refugiados, moradores da zona, evacuados, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres. Relatos que perpassam o antes, o durante e o depois, de pessoas que testemunharam não só a derrocada de um sistema, como também de suas vidas e das gerações que se sucederam.

O livro começa com uma Nota Histórica onde a autora copila trechos de notícias e livros que falaram sobre Chernobyl e assim permite ao leitor, sobretudo aos leigos, se situarem, mesmo que minimamente, no contexto do que foi e de como se deu o acidente nuclear. Mas logo em seguida, a autora começa de fato com as narrativas trazendo o relato de Liudmila Ignátienko, a esposa de um dos primeiros bombeiros a chegarem ao local do incêndio na central atômica.

Em seu relato comovente e angustiante, Liudmila expressa o profundo sentimento que nutria pelo esposo, Vassíli Ignátienko, e de como a exposição à forte radiação liberada pelo reator transformou o corpo de Vassíli e o matou em apenas 14 dias. Uma narrativa forte que transcreve não só uma história de sofrimento e dor, mas de um amor desmedido de uma mulher por seu marido, que mesmo estando grávida de seu primeiro filho foi contra toda a racionalidade para se manter ao lado do esposo doente até o último dia de vida dele.

Através de relatos como de Liudmila, alguns deles bem tensos, outros saudosistasmelancólicos e até desesperadosSvetlana traça um panorama de como viviam os soviéticos atingidos, desde camponeses a citadinos, mas sobretudo de como vivem os deserdados que foram obrigados a abandonar a terra onde viveram por gerações, as dificuldades de readaptação em lugares estranhos para onde foram mandados, o preconceito que ainda sofrem por serem “pessoas de Chernobyl”, como lidam com o sentimento da perda, com a certeza da morte prematura e/ou com o medo de gerar filhos doentes. Conta também sobre a insanidade de tentar “vencer” a radiação, que esteve sempre aliada ao zoocídio[10] de centenas de animais domésticos contaminados, à desinformação sobre os riscos, ao patriotismo exacerbado e à necessidade urgente de conter o vazamento do reator e impedir que outros desastres maiores acontecessem, mas que custou a saúde e até a vida de milhares de homens e mulheres que trabalharam na zona contaminada. 

Por esses tantos olhares, através de um conjunto de vozes que compõem um coro, Vozes de Tchernóbil tece o drama destas pessoas, como também faz a denúncia da ação do Estado, que sob a desculpa de não causar pânico e desordem, preferiu esconder a verdade sobre a dimensão real do problema, até mesmo para a comunidade internacional.

O meu interesse em ler esse livro foi imediato desde o seu lançamento, mas, infelizmente, não foi possível no momento. Mais do que um interesse profissional sobre o tema, vi nesse livro uma possibilidade de conhecer um pouco mais da realidade cotidiana de um dos países que já fizeram parte do bloco socialista. Esse meu interesse se justifica porque desde quando aprendi as diferenças entre capitalismo e socialismo que tenho curiosidade de saber mais sobre os países que experimentaram o socialismo, a exemplo da URSS, China, Vietnã e Cuba. Uma curiosidade quase imanente de saber como era e é a realidade cotidiana desses países, no que avançaram em relação ao capitalismo, no que regrediram, como se vivia e se vive nessas nações. Contudo, sempre vejo com desconfiança o relato de autores de extrema esquerda, e com ainda mais desconfiança o que falam os pensadores de direita, sejam eles moderados ou de ultradireita.

Pela primeira vez leio um livro no qual as pessoas comuns são a voz a relatarUma história oral, do ponto de vista de quem viveu a realidade daquele lugar daquela época. O foco é sem dúvida Chernobyl, mas não há como separar o maior desastre nuclear do mundo e o socialismo soviético. A forma como tudo se deu fala muito do que era a URSS, da ideologia dos que enfrentaram o desastre, dos que dirigiam o gigante socialista. E os testemunhos, sobretudo, falam dessa realidade. Aprendi com esse livro muito mais do que um pensador socialista pudesse me dizer, de forma bem mais real do que as críticas, por vezes tendenciosas, que um pensador de direita poderia supor sobre o que foi o socialismo real.

Sem dúvida, um livro angustiante, pois a situação vivida por essas pessoas era como um tipo de guerra, uma guerra contra um inimigo invisível, incompreensível, dissimulado na aparente normalidade do que existia em volta, no qual, longe da usina, tudo parecia normal. Como compreender a evacuação, a destruição do seu lar, e o homicídio de seus animais, quando nem você mesmo compreende quem é o inimigo contra o qual se luta? Por isso encerro dizendo, simplesmente, que este é um livro altamente recomendável.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 2016 e possui 384 páginas. 

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books. Abaixo também você pode ver imagens aéreas feitas por um drone da cidade de Pripyat, hoje uma cidade-fantasma.


Vídeos

Pripyat de vista por um Drone


Como funciona a produção de Energia Nuclear?



Prévia do Google Books





[1]A transliteração do nome Chernobyl (em ucraniano Чорнобиль) possui diferentes grafias a exemplo de Chernobil, Chernóbil, Chernobyl, Tchernobil ou Tchernóbil. O tradutor do livro de Svetlana Aleksiévitch optou pela grafia Tchernóbil, aportuguesada e mais próxima da pronúncia. Contudo aqui optamos por uma grafia mais popular (Chernobyl) e corrente, inclusive, no Inglês.
[2]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[3]O reator era também conhecido como Chernobil-4
[4]No período a Ucrânia era uma das repúblicas que compunham a União das Repúblicas Soviéticas (URSS).
[5]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[6]ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[7]Incapacidade de reagir; inércia e/ou desinteresse. (Houaiss, 2001).
[8]Uso a expressão “olhar mosaicista” comparando o conjunto dos relatos com as peças de um mosaico. Peças que apesar de distintas, porque as visões dos depoentes são diversas e distintas, ajudam a compor um todo que são os fatos ocorridos naquele momento.
[9]Liquidador é o termo que era empregado pelo Estado Soviético para designar cada membro do grupo de mais de 600 mil pessoas responsáveis pela limpeza da área atingida e contensão do vazamento da usina, ou seja, eram responsáveis por minimizar as consequências do acidente.
[10]Assassínio de animais. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/assassinio-de-animais--zoocidio/28815

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